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Quando Deus se apaixona

As pessoas no caminho espiritual sabem que Deus ama todos os seres e sabem também o que aconteceria se todos os seres amassem Deus. Os praticantes espirituais também sabem o que acontece quando um praticante se apaixona. No entanto, eles podem não saber o que acontece quando Deus se apaixona.

Na forma de Krishna, ele se apaixona por Radha, e essa informação secreta e esotérica sobre a vida amorosa pessoal de Deus é a essência de krishna-bhakti – o coração do Absoluto. Quando Deus se apaixona, ele está em seu momento mais vulnerável e, portanto, mais acessível àqueles que atendem à sua necessidade interior. Os devotos de Krishna cantam, dançam, celebram e vivem esse amor, e Krishna é conquistado por sua bhakti.

Decorado com ornamentos da floresta – suas flores, folhas e argilas multicoloridas – e coroado com a pluma de pavão do conjurador, Krishna, com sua única arma, a flauta, é Deus quando Deus quer ser ele mesmo, relaxando na companhia de seus devotos íntimos, esquecido até mesmo de sua própria divindade para facilitar essa intimidade. Krishna é o conhecedor do amor, mas está subjugado por sua amante, Radha. O amor de Radha representa assim o amor mais completo, é a essência de bhakti que o próprio Deus adora.

A consumação do caso de amor de Krishna e Radha, no qual ele mesmo se curva ao amor dela, é encontrada em cinco capítulos do décimo canto do Bhagavata Purana (29-33). Comumente conhecido como rasa-lila, este poema aparece no meio da descrição do Purana sobre a mítica lila ( jogo, teatro divino) de Krishna, quando o vaqueiro portador da flauta e sua jovem amada, Radha, atingem a adolescência. À medida que a lua de outono se enche, o amor de Krishna por todas as vaqueirinhas (gopis) da aldeia brilha em sua maturidade, e com o som da quinta nota de sua flauta mágica ele chama as gopis, e Radha em particular, para se encontrar com ele nos caramanchões da floresta para dançar e celebrar o segredo de seu amor.

A rasa-lila é considerada por muitos como a maior história já contada. Ela tem sido registrada na literatura sagrada da Índia, recontada por poetas, retratada por artistas, cantada e celebrada em música, filosofada e meditada por milhares de anos. É uma das joias culturais e espirituais do mundo civilizado. Se não fosse pela rasa-lila de Radha e Krishna, a rica tradição religiosa do hinduísmo poderia ter sido apagada do mundo durante a dominação muçulmana na Índia. Embora os muçulmanos pouco se importassem com o hinduísmo, eles não podiam ignorar a história de amor de Radha e Krishna. Os mongóis, em particular, comissionaram seus artesãos para representá-la na arte, e os muçulmanos foram interrompidos em sua conquista pela força da beleza mística e do amor¹. Duradoura, encantadora e profundamente mística, a história de amor de Radha e Krishna é capaz de conquistar reinos, mesmo um tão fortificado quanto o império mítico de nossa mente. Isso porque fala profundamente à alma, mas em uma linguagem mais adequada às nossas preocupações sensuais e mentais.

Existe uma linha tênue entre o mito e a realidade. Um mito pode ser uma falsidade, ou pode ser a verdade expressada alegoricamente. De fato, pelo menos desde a época de Carl Jung, tornou-se popular encontrar significado nos mitos. No entanto, mesmo o melhor mito é apenas uma realidade alegórica. Não é em si uma história verdadeira.

Qual é a história verdadeira? Para a maioria de nós, nossa realidade é o mundo de nossa mente, informado por dados coletados por meio de nossos sentidos. Esta pode ser a nossa realidade, mas quão real ela é? Ela certamente não perdura. Os nossos instrumentos de perceção, os nossos sentidos, são imperfeitos para começar e, por isso, o mundo da nossa mente informado por eles pode ser mais falso do que real. Quente, frio, feliz, triste, bom e ruim são noções mentais relativas à nossa percepção sensorial. O mesmo dia é frio para um e quente para outro, bom para um, ruim para outro. Vemos o mundo através dos óculos da nossa experiência mental e sensual, mas estes acabam por nos impedir de experimentar verdadeiramente. O Vedanta nos diz que o que presentemente percebemos como realidade é parecido com um mito, uma falsidade, enquanto nós mesmos, os experimentadores, somos unidades da realidade – almas. O mundo fenomenal pode ser real, mas nossa percepção dele é falsa, tão falsa que nos faz perder de vista nossas almas. A sensação de perda de nossas almas que domina nossa cultura serve, assim, para destacar a natureza mítica de nossa percepção da realidade decorrente de preocupações sensuais e mentais mal direcionadas. Quanto à história verdadeira, o mito que nos leva à nossa alma nos leva à realidade. De fato, esse assim chamado mito pode não ser um mito completamente, enquanto nossa percepção mental e sensual da assim chamada realidade pode ser mítica. Não é totalmente falsa, mas sim uma alegoria do Absoluto, um reflexo da realidade.

Se o examinarmos de perto, descobriremos que o reflexo da realidade nos informa indiretamente sobre a realidade última. O “mito” religioso da rasa-lila representa a realidade última. É uma realidade última, no entanto, que também confirma o valor da humanidade, especialmente seus aspectos sensuais e emocionais, pois nos informa que nossa sensualidade tem suas origens no Absoluto e que a expressão de emoção amorosa do Absoluto é melhor facilitada dentro da humanidade. Na rasa-lila, Deus Krishna entra na humanidade para celebrar sua sensualidade, confirmando assim a sensação em todos nós de que nosso impulso para o erótico não é algo a ser abolido. Deve ser redirecionado para longe do mundo e em direção ao Absoluto, aparecendo em sua expressão semelhante a humana de Krishna – Radha e Krishna. Na rasa-lila descobrimos o humanismo divino, onde a divindade valida a essência da humanidade, e a humanidade nos fala sobre aquilo que a divindade deve incorporar em sua expressão mais plena.

Embora a história de amor de Radha e Krishna tenha sido analisada em muitos níveis – social, psicológico, político e assim por diante – ela implica em algo mais profundo: nossas vidas mentais, sensuais e intelectuais mal direcionadas são um mito, enquanto o drama amoroso de Radha e Krishna é a realidade última. É a verdade que muitos têm pensado ser sinônimo de beleza, e é o drama eterno no qual a alma pode realizar seu mais alto potencial, viver no amor.

Qualquer tentativa de estabelecer uma exegese lógica estruturada da beleza é falha. Uma exegese da beatitude espiritual última não é exceção. Isso ocorre porque a beleza e, mais ainda, a própria experiência espiritual, são não-racionais e transracionais, respectivamente. A beleza espiritual não é irracional, mas começa onde a razão termina. Porque neste mundo falamos a linguagem da lógica, devemos tentar falar sobre a experiência espiritual em nossa linguagem. Se abordarmos o espiritual, entretanto, a linguagem da lógica será de pouca utilidade, pois no plano espiritual a linguagem é o amor. Embora certamente nos beneficiemos do exercício lógico do Vedanta em um esforço para demonstrar que o Vedanta está apontando logicamente para o amor e a beleza que Radha e Krishna personificam, as expressões da experiência do amor em si são muitas vezes mais convincentes. Assim, se a lógica falhar como deveria, a poesia da experiência de rasa-lila fala por si. Um poema que expressa a experiência espiritual pode transmitir o espírito dessa experiência mais do que volumes de argumentação bem fundamentada.

Em nossos tempos, as pessoas procuram um caminho espiritual que seja pragmático. Como isso vai me ajudar no meu dia-a-dia? Como isso tornará o mundo um lugar melhor para eu viver e criar meus filhos? Essas são boas perguntas. De fato, o mundo está sobrecarregado de conflitos, e nossas vidas individuais são afetadas por eles direta ou indiretamente, pois nenhuma pessoa decente pode viver pacificamente sabendo do sofrimento dos outros. Fome, doenças, opressão política, exploração corporativa e desastres ambientais são apenas alguns dos sintomas que indicam a condição doentia do mundo. Mas o que é a doença em si? É o desejo egoísta, a doença do coração. No mínimo, é essa doença que a rasa-lila procura abordar. A rasa-lila é um conto de abnegação ao extremo, escondido em um exterior de aparente amor egoísta. Aquele amor egoísta no qual estamos todos envolvidos e sobre o qual estamos tão ansiosos para ouvir é o contexto no qual o máximo em abnegação é expresso. Tal é a beleza e o mistério da rasa-lila, onde Radha arrisca tudo, a sociedade familiar e até a religião, impulsionada por seu amor por Krishna. Enquanto ela parece agir por seu próprio interesse egoísta sem se preocupar com os outros, em seu encontro com Krishna ela nos ensina como desistir de tudo por Deus. Se essa não fosse a verdade interior da rasa-lila, como seu aparente egoísmo poderia fazer com que Deus se apaixonasse por ela? Nenhuma história fala mais sobre o que todos nós precisamos ouvir para tornar o mundo um lugar melhor – altruísmo devidamente centrado no objeto perfeito de amor.

 

¹ Prasada, Dr. S.S., Bhagavata Purana: A Literary Study (New Delhi: Capital Publishing House, 1984), p. 296

 

(Artigo original em https://swamitripurari.com/2009/06/when-god-falls-in-love/#identifier_0_4473)

Traduzido por Prananvananda das e revisado pela equipe do site.

Posted in o Absoluto, Visão védica

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